sexta-feira, 30 de abril de 2010

Aí pelas ruas talvez exista ainda alguém fantasiado de Arlequim, como ocorria nos carnavais há algumas décadas. Mas é raro. Assim como o Pierrô e a Colombina, o Arlequim foi muito popular na virada do século. Aliás, não só esse trio, mas toda uma família de saltimbancos, que havia irrompido nos palcos do século XVI. Mas por uma série de fatores, a tematização desses tipos foi muito constante na virada do século XIX para o século XX.

Em 1892, Leon Cavallo cristalizou o conflito do triângulo amoroso em "Os palhaços". Em 1905, Picasso pinta "Família de saltimbancos" e outros quadros com esses personagens. Degas e Cézanne estão entre muitos que também pintaram seu "Arlequim". A própria literatura brasileira vem, em 1919, com "Carnaval", de Manuel Bandeira; em 1920, com "Máscaras", de Menotti del Picchia, e "Arlequinada", de Martins Fontes. Mário de Andrade, por sua vez, tematizou o carnaval sob várias formas e definia-se como uma criatura arlequinal.

Mas quem vê o Arlequim tão sestroso, folgazão e brejeiro (como se dizia), mal pode imaginar que num tempo remoto ele foi o avesso disto tudo. Exatamente. Originalmente, em vez de um sedutor, foi um violador. Em vez de amante, um estuprador. Em vez de um dançarino, um guerreiro bárbaro.

Por isto, o estudo de certas imagens e palavras mostra como o certo e o avesso vivem se intercambiando. Preocupado com essas ambivalências, Freud já havia anotado que a etimologia de "branco" e "preto" parecia ser a mesma, alertando para o fato de que o radical do francês "blanche" e do inglês "black" é o mesmo.

Arlequim, Hallequim. O nome é quase idêntico. Mas o significado diametralmente oposto.

Quem vê no palco ou no carnaval o saltitante e sedutor Arlequim nem percebe que ele é uma variante moderna de um tipo selvagem que comandava uma horda de homens-bestas. Hallequim é uma deformação onomástica de Harila-King - rei dos exércitos. Tinha na mão enorme maça ou tacape. Comandava um feralis-exércitus (exército de mortos). Pertencia à mesma estirpe de figuras primitivas, como o lendário rei Frotho, da mitologia dinamarquesa, que invadia aldeias, violentava mulheres e humilhava barbaramente os vencidos. Esses guerreiros exibiam a petulância (agressividade sexual), a lascívia (exigências sexuais) e se consideravam conubernales (companheiros da tenda do rei). Vestiam-se de peles selvagens, assemelhando-se aos ursos, e não cortavam os cabelos até que matassem alguém. Também não tinham propriedades pessoais e viviam se deslocando atrás de presas, como centauros seqüestradores de mulheres.

Mito? Realidade?

Esse exército não era só uma crença. Era muito bem representado por máscaras. Temos uma prova disto, uma descrição que data de 1100, vinda da Normandia, que cita como rei da tropa selvagem um certo Herlechinus, que viria do Harilaking anglo-normando, rei da família Herlechini, que não é senão o Arlequim. Nosso Arlequim da commedia dell'arte foi, na origem, o sublime rei de um exército de fantasmas. Pode-se reconhecer esta forma primitiva do Arlequim em muitas personagens que existem no carnaval, graças à fantasia que usam. A partir de 1470 esta fantasia é descrita como despedaçada, cheia de rasgões, com pequenos pedaços de tecidos coloridos.

Um estudo semiológico das metamorfoses do personagem, sua passagem da horda primitiva para o palco da comédia, poderia ser feita mais detalhadamente. Não só a transformação da roupa esfarrapada em estilizados losangos coloridos, mas a conversão do porrete original em espada fálica. Igualmente, a figura original do Hallequim está sempre num cenário onde há cavalos e se inscreve no mito dos centauros. Esses cavalos, carroças, carruagens encaminham o tema do seqüestro, presente nas diversas peças e gravuras que tratam do Arlequim moderno. O que era grotesco atinge não apenas o cômico, mas até o sublime, através da estilização, em peças como "O triunfo de Arlequim", "Arlequim Imperador da Lua" e "Arlequim Cavaleiro do Sol" (séc. XVIII). O bárbaro e primitivo Hallequim surgia nas vilas e aldeias em meio a formidável charivari. Sobretudo no solstício de inverno (entre o Natal e a Epifania). Ele está registrado num texto do séc. XIV ("Roman de Fauvel") que, em forma de poesia, narra o casamento de um cavalo e uma mulher.

E por aí teríamos muito ainda a discorrer. A moderna teoria da carnavalização, que amplia o que em 1927 foi lançado por Mikhail Bakhtin, tem notável contribuição a dar não só na problematização e recuperação desse personagem, mostrando como o imaginário civiliza as imagens arcaicas. Um estudo moderno do Arlequim não pode desvinculá-lo da figura daquilo que em antropologia se chama de "trickster"- aquele mágico e malandro das tribos, que é tão bem encarnado no "Macunaíma" de Mário de Andrade.

E assim como a imagem do Arlequim se enriquece com a recuperação de seu metamorfoseado avesso histórico, também as figuras do Pierrô e da Colombina vão deixando de ser apenas fantasias episódicas e superficiais de uma festa carnavalesca, para serem estruturas simbólicas de nosso inconsciente e de nossos dramas sociais.

Tomemos um exemplo, entre tantos, na literatura brasileira: "Dona Flor e seus dois maridos", de Jorge Amado, é um romance que pode ser lido nessa clave. Vadinho é o Arlequim: dançarino, boêmio, brigão, don Juan, sedutor, jogador, vivendo aleatoriamente o prazer presente. Morre dançando no carnaval, fantasiado de mulher. Já Teodoro é o Pierrô: é o lugar da ordem, do prazer com horário certo, um burocrata no sexo e nos negócios. Porém, Dona Flor, envolvida por esses dois amores contraditórios, resolve imaginariamente o conflito que a Colombina tradicionalmente nunca pôde resolver. Ela fica com os dois. Trabalha pela inclusão imaginária, vivenciando uma verdade intemporal, pois as criaturas humanas são elas e suas contradições.

As máscaras nos falam das ambiguidades e a teoria da carnavalização ajuda a resgatar enigmas de ontem e a aclarar comportamentos individuais e sociais hoje.


[Jornal O Globo - 5 de Março de 2003]

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